[zorba e jackie]
"Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro de um caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso…Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. (...) E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra. Não que fizesse grande fica pé naquela amizade. Longe disso. A menina dos seus olhos era a morgada, a filha, que o acariciava como a uma criança. A velha toda a vida o pusera à distância. Dava-lhe o naco de broa (honra lhe seja feita), mas borrava a pintura feita logo a seguir: - Ala! E ele retirava-se cerimoniosamente para o ninho. Só a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos anos fora, o consentira ao lume, enroscado a seus pés, enquanto a neve, branca e fria, ia cobrindo o telhado. O velho também o apaparicava de tempos a tempos. Se a vida lhe corria e chegava dos bens de testa desenrugada, punha-lhe a manápula na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patrão novo. Porque o seu verdadeiro dono era o filho, um doutor, que morava muito longe. Só aparecia na terra nas férias do Natal. Mas nessa altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros apenas o tratavam, sustentavam, para que o menino tivesse cão quando chegasse. Apesar disso, no íntimo, considerava-se propriedade dos três: da filha, do velho e da velha. Com eles compartilhara aqueles longos oito anos de existência. Com eles passara Invernos, Outonos e Primaveras, numa paz de família unida. Também estimava o outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas amizades cerimoniosas não se davam com o seu feitio. Gostava era da voz cristalina da dona nova, da índole daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote.
- Tens o teu patrão aí não tarda, Nero…
O nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde nascera, não tinha chamadoiro. Nesse tempo não passava de um pobre lapuz sem apelido, muito gordo, muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe, que lhe lambia o pêlo e o reconduzia à quentura do ninho, entra os dentes macios, mal o via afastar-se. Pouco mais. Com dois meses apenas, fez então aquela viagem longa, angustiosa, nos braços duros de um portador. Mas à chegada teve logo o amigo acolhimento da patroa nova. Festas no lombo, leite, sopas de café. De tal maneira, que quase se esqueceu da teta doce onde até ali encontrava a bem-aventurança, e dos irmãos sôfregos e birrentos.
- Nero! Nero! Anda cá, meu palerma!
A princípio não percebeu. Mas foi reparando que o som vinha sempre acompanhado de broa, de caldo ou de um migalho de toucinho . E acabou por entender. Era Nero. E ficou senhor do nome, como da sua coleira. (...) Até missa ouvia aos domingos, coisa que nenhum cão fazia. Aninhava-se a seu lado, e ficava-se a ver o padre, de saias, fazer gestos e dizer coisas que nunca pôde entender. Foi a seguir a uma cerimónia dessas que o doutor chegou à terra. Todo muito bem vestido, todo lorde. Quando viu aquele senhor beijar a rapariga, atirou-lhe uma ladradela, por descargo de consciência. E o estranho, então, olhou-o atentamente, deu um estalo com os dedos, a puxar-lhe pelos brios, e teve um comentário:
- O demónio do cachorro é bem bonito!
Envaideceu-se todo. Mas o homem perdeu-se logo em perguntas à irmã, em cumprimentos a quem estava, sem reparar mais nele. E não teve outro remédio senão segui-los à distância, num ressentimento provisório. Ao chegar a casa, foi direito ao cortelho. E ali esteve uma boa hora à espera, a morder-se de ansiedade. Por fim, o recém-vindo chamou do fundo da sala:
- Nero! Venha cá!
Era a posse. Havia naquela voz um timbre especial que o fez estremecer. Pela primeira vez sentia que tinha realmente um dono. Contudo, lá arranjou forças para se deixar ficar enroscado na palha, salamurdo, a fingir que dormia…
Mas a ordem voltou logo a seguir, mais forte, mais imperativa:
- Nero!
Ergueu-se. Subiu os degraus da loja e, humilde e desconfiado apresentou-se."
[...]
Excerto de Cão Nero, do livro Bichos de Miguel Torga
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