Há dias em que acordo com vontade que já seja noite e que já seja hora de voltar para a cama e dormir. Dias em que a vontade de fazer qualquer coisa que se assemelhe a produtiva é absolutamente nula. Dias como os de hoje em que acordei e fiquei na cama a olhar para o tecto e a ouvir a chuva a cair. Dias como os de hoje em que sou tomada por uma nostalgia estranha que me traz à memória as recordações mais longínquas que há muito estavam guardadas num lugar tão recôndito que já esqueci. E foi assim, que despropositada me surgiu a memória fílmica do momento em que fui obrigada a insurgir-me em defesa do homem mais alto do mundo.
Tinha cinco ou seis anos, apontando sem precisão, e andava no colégio. E lá andava também a Tatiana. A Tatiana, que para além do nome que sempre achei tenebroso, juntava todos os elementos chave da minha inveja. Era irritantemente magra, tinha todos os conjuntos da Barbie, os cabelos eram compridos e usava todas as parafernálias que pudessem existir para os enfeitar. E eu que até à altura sempre tive o cabelo curto à rapazinho, que nunca usei acessórios da Barbie porque a minha mãe os achava pirosos e que sempre sonhei com produtos milagrosos que me transformassem num corpinho magro como os que apareciam na televisão, achava-a a combinação de uma petulância que devia evitar a todo o custo. Preferia o meu mundo construído à imagem de fantasias solitárias, disfarçado por uma aparência de criança calma, discreta e despercebida enquanto a Tatiana se rodeava de bibes cor-de-rosa que a admiravam. Até que um dia, reparei que ela contava empolgada aos seus bibes cor-de-rosa que o seu pai era o homem mais alto do mundo. Chegara à altura de me impor. Como poderia ela, que nunca sequer tinha reparado na minha existência, afirmar que o seu pai era o homem mais alto do mundo? Eu sempre soubera que o meu pai era o homem mais alto do mundo! Era a minha única verdade absoluta. De um patamar inferior, olhando para os crescidos de cabeças desproporcionais aos meus olhos, a única certeza a ter era que o meu pai era o homem mais alto do mundo. O meu pai conseguia tocar no céu e não havia ninguém que o pudesse negar, nem sequer a Tatiana. Por isso, tirei as mãos do meu bibe aos quadrados vermelhos e respirei fundo na tentativa de arranjar toda a coragem que julgava não ter. E disse: "Tatiana, desculpa mas o teu pai não pode ser o homem mais alto do mundo. O meu pai é que é o homem mais alto do mundo!". Ao que ela respondeu com toda a altivez para a qual já me tinha preparado, que isso era impossível e que eu não devia dizer-lhe uma coisa dessas. Acordámos, então, que o melhor seria tirar a prova dos nove. No dia seguinte de manhã, ambas insistiríamos para que os nossos respectivos pais nos levassem até à sala. E assim foi, no dia seguinte, entrei na sala confiante de mão dada ao meu pai e orgulhosa na razão magnânime que iria provar. Mas, o confronto com a verdade foi terrível e lado a lado quando se dirigiam até à saída, a distância de palmo e meio que separava o ombro do meu pai do do pai da Tatiana gritou-me impiedosamente a mentira da minha crença. Afinal o meu pai não era o homem mais alto do mundo!
Vencida mas com uma réstia de orgulho, conclui que havia ainda algo a fazer. Assim que os nossos pais saíram e no preciso instante em que a Fátima-a-educadora virou as costas, eu dirigi-me à Tatiana e preguei-lhe uma enorme e impetuosa estalada que deixou o seu rosto vermelho. Aquele foi um acto tão inesperado que a pobre Tatiana perdera num segundo toda a arrogância e impertinência que caíram ao chão com os seus ganchos da Barbie. Depois disto, só me faltava rematar: "Tatiana, o meu pai continua a ser o homem mais alto do mundo.".
Ignoro o que é feito da Tatiana por estes dias e ignoro também a razão do assalto desta memória neste preciso dia de chuva.